17 abril 2008

TreeFrog

A Warfrog, a editora de que Martin Wallace é proprietário, anunciou que vai lançar uma nova marca chamada Treefrog. A parte interessante disto é que esta nova marca corresponde a uma alteração da sua filosofia e modus operandi.

Em vez de lançar um jogo por ano, a Treefrog lançará 3! Estes títulos, também da autoria de Martin Wallace, terão componentes de luxo e exclusivamente em madeira (com a excepção do tabuleiro, digo eu), um preço a condizer e um nível de complexidade menor do que o normal nos jogos lançados pela Warfrog.

O primeiro jogo Treefrog é o Tinners' Trail, que deverá ser lançado em 2008, antes de Essen.

Ainda não é claro, mas aparentemente a Warfrog continuará a lançar um jogo por ano em paralelo com os lançamentos da Treefrog.

Boas notícias para os fãs do Martin Wallace, não?

11 abril 2008

Race for the Galaxy, o sacana!

Contexto histórico

Já toda a gente sabe como este jogo apareceu: o sacana do Seyfarth fez o Puerto Rico, o grande épico sobre a escravatura nas caraíbas, que vendeu como mortalhas no festival do sudoeste e se tornou no jogo número 1 do ranking do BGG.

O gajo da Alea, que não é parvo nenhum, pensou "se um épico sobre a escravatura nas caraíbas vende como mortalhas no festival do sudoeste, um jogo de cartas sobre a escravatura nas caraíbas também é capaz de não vender mal. E se vender mal, posso sempre ir para o festival do sudoeste vender as cartas para os gajos fazerem filtros".

Assim, numa das milhares de convenções anuais de jogos de tabuleiro, o gajo da Alea pediu ao Tom Lehmann e ao Richard Borg para pensarem no assunto. Os gajos pensaram no assunto e não chegaram a conclusão nenhuma. Durante a noite, decidiram ir beber umas jolas e falar de gajas, quando tiveram a ideia de usar as cartas multifunções, ou estaminais, como alguém muito inteligente uma vez lhes chamou. Quando mostraram ao gajo da Alea, no dia seguinte, ele ficou impressionado:
- Grande ideia que vocês tiveram, meus grandes sacanas!

Entretanto, o Seyfarth também estava a trabalhar na sua própria versão do jogo.
- Vem-te deitar, Andy.
- Espera lá Karen, que estou aqui a trabalhar no jogo de cartas sobre a escravatura nas caraíbas.
- Então e o jogo dos correios que me tinhas prometido? Só pensas é em escravatura nas caraíbas! Grande sacana!

Quando o gajo da Alea lhe mostrou a ideia dos outros dois, ele ficou impressionado:
- Grande ideia que os gajos tiveram... os sacanas!

O Seyfarth decidiu incorporar a ideia no seu próprio protótipo e assim nasceu o San Juan, o jogo de cartas sobre a escravatura nas caraíbas. O autor é o Seyfarth, mas o Tom Lehmann e o Richard Borg merecem uma referência honrosa nas regras e uma pequena quantia em cada venda, como reconhecimento do seu contributo para o jogo.

Entretanto o Tom Lehmann tinha gostado da ideia das cartas multifunções, ou estaminais como alguém muitíssimo perspicaz uma vez lhes chamou, e, como estava a trabalhar num jogo sobre impérios espaciais, decidiu juntar o útil ao agradável e usá-las nesse título.

Foi assim que nasceu o Race for the Galaxy.

O jogo foi sendo desenvolvido, testado, mais desenvolvido, depois mais testado. E ia sendo mostrado nas milhares de convenções anuais de jogos de tabuleiro. Quem tinha oportunidade de o jogar, voltava impressionado:
- Estive a jogar o novo jogo do Tom Lehmann na convenção de jogos de tabuleiro de Katmandu.
- E então?
- Eh pá, aquilo usa cartas multifunções, ou estaminais como alguém muitíssimo bonito uma vez lhes chamou.
- Grande sacana, esse Tom Lehmann!

E o mito foi crescendo. Ano após ano, convenção atrás de convenção, o jogo continuava a ser testado, aperfeiçoado, mais testado e mais aperfeiçoado. E quem o jogava voltava cada vez mais impressionado.
- Joguei Race for the Galaxy ontem, na convenção internacional de jogos de tabuleiro de Coina.
- E então?
- Curou-me a artrite na mão direita.
- A sério?
- Juro-te!
- Sacana do jogo!

Mas apesar de tudo, parecia não haver maneira de arranjar uma editora que publicasse o jogo. O gajo da Alea estava satisfeitíssimo com o par de jogos sobre a escravatura das caraíbas e nem queria ouvir falar disso.
- Vendem que nem mortalhas no festival do Sudoeste e, para além do mais, o San Juan já usa a ideia das cartas multifunções, ou estaminais como alguém muitíssimo viril uma vez lhes chamou, por isso não ia ser nada de novo.

Ao Tom Lehmann restava continuar a aperfeiçoar, testar e ir mostrando o resultado nas convenções. Os sortudos que tinham oportunidade de o experimentar, voltavam cada vez mais impressionados.
- Joguei o Race for the Galaxy na convenção de jogos de tabuleiro de Ipiritacuarijacuratinga.
- E então?
- Resolveu o problema de encontrar um infantário para a minha filha, tratou-me do IRS e parece-me, mas ainda não tive oportunidade de confirmar, que introduziu silicone nos seios da minha esposa, de forma a torná-los mais volumosos e libertos dos cruéis caprichos da gravidade.
- Sacana!

Finalmente, Jay Tummelson, o avozinho dos jogos e grande líder da Rio Grande, decidiu formar uma irmandade secreta, selada com sangue, com os tipos da Ystari e da Abacus, para lançar o jogo.
- Lançaremos esse jogo milagroso de que falam! God bless America!
- Vamos a isso, carraças! Vive la France!
- Deutschland über alles!

Só o gajo da Alea é que não gostou.
- Grandes sacanas!

O jogo

Em termos de mecanismos, o Race for the Galaxy não renega as suas origens e apresenta muitas semelhanças com os seus antepassados esclavagistas das caraíbas.

As plantações do Puerto Rico, que eram edifícios de produção no San Juan, agora são planetas. No entanto, os planetas podem ser de 2 tipos: militares ou não militares. Dentro de cada tipo ainda podem ser de produção, windfall ou cinzentos.

Um planeta de produção produz mercadorias, um planeta windfall não produz mercadorias em condições normais (mas pode fazê-lo nalgumas situações) mas vem "carregado" com uma mercadoria na altura em que é colonizado. Os planetas podem também ter poderes especiais associados a uma das fases do jogo, o que não acontecia com as plantações do Puerto Rico, nem com os edifícios de produção do San Juan.

Os edifícios púrpura passam a chamar-se developments e dão poderes especiais, tal como acontecia nos outros dois jogos. A grande diferença aqui, é que os developments mais caros não só podem render muitos pontos, como já acontecia, mas também têm poderes muito úteis. Ou seja, aquela regra de ouro do San Juan e do Puerto Rico, de fazer os edifícios caros no fim, já não se aplica aqui com tanta certeza.

Existem 5 roles disponíveis, mas dois deles vêm com 2 versões (com o bónus entre parêntesis):
1. Explore (+5 ou +1+1)
2. Develop (-1 na colocação de developments)
3. Settle (+1 carta, quando se coloniza)
4. Consume (Trade ou 2x)
5. Produce

O Explore permite explorar, ou seja, ir buscar cartas ao baralho. Em condições normais, cada jogador tira 2 cartas e escolhe 1. Quem escolher o role, tem 1 de 2 bónus à disposição: tira mais 5 cartas do baralho, perfazendo um total de 7, e fica com uma ; tira mais uma carta do baralho, perfazendo um total de 3, mas fica com 2.

O Develop permite colocar um development, descartando um número de cartas da mão igual ao preço indicado na carta. O bónus de quem escolhe o role é simplesmente descontar 1 ao preço. É muito parecido com o builder do Puerto Rico.

O Settle permite colonizar um planeta. Se o planeta não for militar, tem de se descartar um número de cartas igual ao preço indicado na carta. Se o planeta for militar, então o jogador tem de possuir o poder militar necessário para o poder colonizar. O bónus do Settle é receber uma carta logo a seguir a ter efectuado a acção.

O Consume corresponde, grosso modo, ao Capitão do Puerto Rico (não existe equivalente no San Juan), mas numa versão mais complicada e é normalmente o role que dá mais trabalho a explicar. Basicamente o que o Consume faz é activar todos os poderes de consume que o jogador tiver, pela ordem que o jogador escolher. Cada poder de consume, normalmente, permite trocar uma mercadoria por 1 ou mais pontos e/ou cartas. Existem poderes de consume que permitem consumir uma só mercadoria por um ponto, existem poderes que consomem mercadorias específicas, etc (estes poderes encontram-se nos planetas e nos developments que o jogador já construiu ou colonizou). A ordem pela qual se activam os poderes é relevante, porque dependendo dela, pode-se consumir mais mercadorias ou menos e, tal como acontece no Puerto Rico, nem sempre é interessante trocar os bens por pontos. Para complicar um bocadinho mais a coisa, um dos dois bónus possíveis do Consume, é o Trade. Ou seja, em vez de haver um role específico para fazer Trade, o único gajo que pode trocar mercadorias por dinheiro é o tipo que escolheu o Role de Consume (apesar de todos serem obrigados a consumir os bens, depois). Fora isto, o Trade funciona de uma forma simples: cada mercadoria tem um valor base (há 4 mercadorias diferentes) e a esse valor aplicam-se todos os bónus de trade aplicáveis e o jogador recebe esse valor em cartas. O outro bónus do Consume é o 2x, que duplica o total de pontos que o jogador recebe nessa fase de consume. Este é um must, para quem quer seguir estratégias produtivas.

Por último, há o Produce onde se produz. Todos os planetas de produção produzem e o bónus de quem escolher o role é poder produzir num planeta windfall à escolha (os tais que, em condições normais não produziam).

A grande diferença para o Puerto Rico e o San Juan é que os roles são escolhidos simultaneamente por todos os jogadores, em vez de sequencialmente e só se executam os que forem escolhidos por alguém. Esta alteração é, provavelmente aquela que mais fundamentalmente muda o jogo, para melhor, na opinião de alguns, ou para pior, na opinião de outros. Para além disso, os planetas abrem mais possibilidades, por terem uma estrutura mais complexa do que as plantações e toda a lógica do Consume também enriquece substancialmente o jogo.

A apreciação

O Race for the galaxy não é um jogo fácil de digerir. Não porque as regras sejam muito complicadas - porque não são - mas porque é daqueles jogos que confronta o jogador desde o início com uma árvore de decisão bastante larga e não lhe dá pistas absolutamente nenhumas sobre qual o melhor caminho a seguir. E para se jogar o jogo com um mínimo de competência, é preciso elaborar e pôr em prática planos de médio prazo que exigem algum conhecimento do jogo. Para piorar as coisas, a iconografia das cartas, que funciona bem para os jogadores minimamente experientes, tem de ser aprendida. E antes de ser aprendida, confunde muito mais do que ajuda.

Por exemplo, para montar um motor produtivo que renda 8 pontos a cada 2 jogadas, é preciso fazer vários Settles de planetas de produção, reunir o capital necessário para os conseguir pagar e garantir que existem consume powers suficientes para que os bens produzidos nesses planetas possam ser trocados por pontos. E depois é preciso operar esse motor.

Como é que um jogador, que está às aranhas a tentar perceber para que é que as cartas que tem na mão servem, há-de saber que precisa de fazer isto tudo?

A resposta é simples: não vai saber. Ou pelo menos, não vai saber durante os primeiros 2 ou 3 jogos, no mínimo. E se não jogar mais do que esses 2 ou 3 jogos, vai ficar a pensar que o Race não mais do que uma espécie de San Juan muito mais confuso.

Depois há a questão da interacção.

Para ser claro: este não é um jogo que facilite, ou promova a conversa e o convívio entre os jogadores. Nunca num jogo de Race vai haver o tipo de ambiente barulhento e participado que existe, por exemplo, num jogo de El Grande, ou de Settlers of Catan. A escolha simultânea dos roles faz com que uma parte do jogo decorra normalmente em silêncio e o número brutal de possibilidades e decisões difíceis com que cada jogador é confrontado a cada ronda, também não facilita o convívio. Assim, os jogos de Race for the Galaxy costumam ser relativamente silenciosos, com todos os jogadores concentrados no que pretendem fazer. Normalmente a conversa acontece mas é no fim do jogo, sobre as estratégias que se seguiram, as opções que se fizeram, etc.

Mas o facto de este não ser um jogo social, que não é, não quer dizer que este não seja um jogo em que não exista interacção. Pelo contrário, as acções de cada jogador influenciam bastante o jogo dos outros, embora de uma forma indirecta. Quem se focar exclusivamente no seu próprio jogo, dificilmente vai ter hipóteses de se sair bem. Mas, mais uma vez, o jogo não força essa interacção, ou dá sequer pistas sobre ela. Esta necessidade de prestar atenção ao que os outros estão a fazer tem de ser aprendida com a experiência. É perfeitamente possível jogar um jogo de Race exclusivamente focado no próprio jogo... e até é o que acontece normalmente, durante os primeiros 5 ou 10 jogos.

Estes factores fazem com que este Race for the Galaxy não seja um jogo que vai agradar a toda a gente.

São necessários 2 ou 3 jogos para interiorizar os mecanismos o suficiente, para se poder começar a aprender estratégias. São necessários 5 ou 10 jogos para aprender as estratégias básicas. São necessários 15 a 20 jogos para começar a aprender a reagir ao jogo dos adversários e a aproveitar as oportunidades que eles proporcionam e são necessários mais de 30 jogos, para começar a conseguir utilizar o tempo, no sentido mais gamey do termo, de uma forma eficaz (e isto sei, porque joguei 30 jogos até agora e ainda não consigo fazê-lo correctamente :) ). Só isto já chega para afastar uma boa parte dos jogadores.

Por outro lado, este é um jogo bastante "euro", no sentido mais negativo do termo. Ou seja, não há aqui um tema envolvente, nem mecanismos que façam sentido para o servir. Os jogadores não se sentem no papel de governantes de um império intergaláctico, nem nada que se pareça, pelo que quem mais valoriza este tipo de experiência, provavelmente também não vai apreciar este Race for the Galaxy.

Agora, para aqueles que, como eu, não precisam de tema e que gostam de jogos complexos, com decisões muito complicadas em todas as jogadas, muitos factores a ponderar e grande variedade estratégica, este Race for the Galaxy é uma benção dos céus.

Para quem se tinha cansado do Puerto Rico, por achar que se tornava um pouco repetitivo ao fim de algumas dezenas de jogos, este Race for the Galaxy é a solução. Aumenta substancialmente o número de estratégias possíveis, aumenta dramaticamente a variabilidade de jogo para jogo e resolve o maior problema do Puerto Rico, na minha opinião, que era a questão da ordem pela qual os jogadores se sentam na mesa e que dá grande vantagem ao tipo que tiver a sorte de se sentar à esquerda do novato.

Há aqui muitíssimo terreno a explorar e muitas estratégias possíveis para aprender. É daqueles jogos em que não é possível arranjar uma receita e depois aplicá-la sempre. É necessário escolher o melhor caminho a seguir, em função das condições que vão sendo apresentadas. Ainda para mais, como o jogo é muito comprimido, graças à selecção simultânea dos roles, cada partida joga-se muito depressa e não é invulgar jogarmos 3 ou 4 jogos numa sessão. E funciona muito bem com 2 jogadores apenas, o que também é uma vantagem.

Nos nossos jogos tem-se revelado obrigatório ficar a conversar sobre o que cada um fez, o que poderia ter feito, o que resultou, o que falhou, etc, a seguir a cada jogo. É dos meus jogos favoritos de sempre, aquele que mais joguei em 2008 e, por isso, um sério candidato ao título de Estupendo de Ouro Estupendo 2007, embora ainda não me tenha curado a artrite nem modificado a anatomia da minha cara-metade.

Mas é caso para dizer: sacana do Tom Lehmann!