08 abril 2009

Commands & Colors Ancients: Batalhas com história

O nascimento dum filho, como a grande maioria de vós o saberá melhor que ninguém, acarreta para um pai extremoso e ciente das suas funções, grandes responsabilidades e também grandes mudanças. Por muito que se oiça os conselhos e avisos dos mais velhos e experientes, nunca ninguém está devidamente preparado para as exigências insondáveis e incontroláveis duma cria, mesmo que esta tenha um ar absolutamente encantador. Face a isso, este pobre e honrado escriba deixou assim a vida boémia e lúdica a que estava habituado, remetendo a sua mísera existência a uma rotina de mudar fraldas, preparar biberões e acalmar choros descontrolados. Mas não se pense que não batem as saudades duma mesa cheia de amigos e boa pinga que tradicionalmente um bom jogo de tabuleiro oferece. Claro que sim, mas na impossibilidade, por ora, de mergulhar de corpo e alma no seu hobby de eleição, resta-lhe apenas meter o catraio no marsupial e entregar-se às jogadas diárias de Street Soccer e Powerboats que faz na solidão do seu PC.
Mas nem tudo são privações. Diga-se pois, em abono da verdade e do equilíbrio das coisas, que o que Deus tira com uma mão dá com a outra e estes tempos de abstinência serão compensados no futuro, porque a criança nasceu macho e, portanto, acredito que tenha dentro dela aptidões para ser um grande jogador e para passar ao lado do pai muitas tardes com dados de seis faces na mão. Não faço questão nenhuma que seja do Benfica, aliás provavelmente o futebol português não deve durar muito mais, mas levarei a meu encargo um esforço nobre para que ele saiba apreciar, na mais tenra idade, a excelência dum bom Knizia e a importância dum Wallacce dos primeiros tempos.
Gostava muito de continuar este paleio introdutório, mas terei primeiro de preparar o biberão para o alimentar, pois começo a ouvir os primeiros sinais dum despertar que, tenho a certeza, será bastante ruidoso.


Há já algum tempo que estava para escrever algumas palavras sobre Commands & Colors: Ancients, mas nunca o consegui fazer. Tecer parágrafos sobre jogos de guerra, especialmente quando são bons, é quase como, para um escritor de romances, aventurar-se na poesia. Mas afinal este é talvez o meu jogo preferido e, portanto, nada de mais lógico do que dar aqui a minha opinião.
Desenhado por Richard Borg, C&C:A é um jogo que pega novamente no seu aclamado Command Card Sytem que já antes tinha sido posto em prática com resultados interessantes em títulos como Battle Cry e Memoir 44. Tudo gira à volta de cartas que permitem ao jogador movimentar as suas tropas consoante as instruções nelas impressas. Ou seja, e para os poucos que não conhecem, o tabuleiro está dividido em 3 campos (direita, centro e esquerda) e as instruções, basicamente e duma forma muito grosseira, referem-se a ordens relacionadas com as posições na batalha. Exemplo: Movimentar 3 unidades do lado direito, movimentar toda a cavalaria que estiver no centro, uma unidade em cada um dos 3 campos, etc. Percebem a ideia? O objectivo é o jogador ter de fazer escolhas consoante a sua mão de cartas. O jogo deste modo cria limitações às movimentações e muitas dúvidas sobre que corpo do exército movimentar resultando daí uma experiência de jogo intensa e com o bónus de uma simulação de batalha durar no máximo uma hora.
O sistema em questão atinge o seu auge em C&C:A que calça como uma luva na história militar da antiguidade e faz rebolar de contentamento os curiosos e estudiosos das grandes batalhas. O primeiro título da franchise centra-se nas guerras púnicas e o jogador pode finalmente por em prática as suas aptidões de general e ver como se saia se vivesse naquele tempo e tivesse a cargo milhares de homens e alguns elefantes. É que estudar uma batalha púnica e saber os seus passos é um hobby mais menos recorrente e bastante saudável diga-se. No entanto, para todos aqueles que já passaram dezenas de horas e ler sobre o assunto, fica-lhes um amargo de boca sempre que fecham um livro e imaginam como seria um campo de batalha. É que, por muita teoria que se tenha, falta o mais apetecível. A sensação. E é essa lacuna que C&C:A vem, na minha opinião, colmatar na perfeição.
Em primeiro lugar as batalhas mais importantes e mais badaladas estão todas reconstituídas, como a do Rio Ticinus, Cannae, Castulo, Baecula ou Zama. A par disto, o jogador pode ler um pequeno apontamento histórico sobre a batalha em si e sobre o que aconteceu. Para além disso tenta-se recriar o tipo e quantidade de tropas envolvidas e as vicissitudes do terreno e da própria contenda. Um mimo.
Em segundo lugar estão lá os grandes generais cartagineses e romanos como Hamilcar, Hannibal, Hanno, Hasdrubal, Scipio, Cassius, Atilus, etc. Eles têm a sua peça especial que se movimenta e que é fulcral no desenrolar dos acontecimentos.
Por último o jogador pode também contar com uma panóplia extensa de unidades para se entreter. Infantaria, carros, cavalaria, camelos, máquinas de guerra, elefantes, camelos, arqueiros, etc. Cada uma destas unidades tem especificidades próprias e nem sempre são iguais dum lado ou do outro da barricada.
Bem, acabada que está a apresentação, vou ali pôr a chucha no Gabriel que ele parece estará resmungar com qualquer coisa.


Quanto ao jogo em si, este lê muito bem o que deveriam ter sido as batalhas da altura. É tida e atenção a supremacia de certas unidades, a entrada delas em cena, a importância do líder como elemento moralizador, a vital necessidade das tropas estarem unidas e não dispersarem, a fragilidade dos flancos e a imprevisibilidade do comportamento dos elefantes e também de certas tribos barbaras que são incorporadas. Nesse aspecto a simulação parece-me muito bem conseguida e acho que é impossível fazer melhor. Só para verem até onde pode chegar o pormenor, a inexperiência dos generais envolvidos é tida em consideração, ficando para o efeito, o jogador, com mais ou menos cartas de jogo. Contudo, não se acobardem os mais justos, que existem batalhas realmente muito desequilibradas e portanto mal se monta o cenário já se sabe, em teoria, quem vai perder, mas relembro que o que interessa essencialmente é simular o que aconteceu no campo e não passar por cima da história para se ter cenários justos.
Existe contudo o elemento sorte. Há dados no meio e as contendas resolvem-se com um lançamento deles. Mas aí impera o cálculo das probabilidades. Se a infantaria resolve ir ao encontro da cavalaria, o mais certo é levar uma carga de porrada tal que para a próxima o jogador pensará duas vezes se valerá a pena repetir a graça. A infantaria, por exemplo, lança menos dados e movimenta-se mais devagar que a cavalaria. Existem vários tipos destas unidades e cada um desses tipos tem características diferentes tanto ao nível da movimentação como de poder de combate. A listagem é grande e é necessário consultar, pelo menos nos primeiros jogos as cabulas que a GMT gentilmente oferece para que as dúvidas sejam dissipadas rapidamente.
No calor da batalha é muito importante as unidades estarem unidas, especialmente em redor do seu líder. Isso torna-as menos vulneráveis aos ataques inimigos. O objectivo é manter um corpo coeso porque as vantagens são enormes tanto no ataque, como na defesa e também nas movimentações. Existem muitas cartas que activam o líder e todas a linha de homens que estiver unida. Isto permite que um jogador ao jogar uma carta deste tipo possa mexer mais peças, desferindo ataques mais mortíferos. Claro que conseguir fazer isso é difícil, porque no meio da confusão pode-se perder o controlo e com ele a formação. Os ataques pelos flancos conseguem resultar melhor, especialmente se forem desferidos pela cavalaria, mais ágil para estas ocasiões. Por outro lado algumas unidades podem retirar quando confrontadas com um ataque desproporcional do inimigo, evitando assim baixas importantes. O senão da opção é que recuam e poderão fugir da formação, tornando-se mais apetecíveis para ataques futuros. Mas mais vale uma unidade perdida do que morta. Até porque mais tarde pode ser possível voltar a inseri-la no corpo principal.
A ideia do jogo é esta, portanto todos os condimentos para uma recriação deste tipo estão presentes. As boas notícias não acabam aqui, porque existem no mercado mais experiências. O franchise já conta com algumas expansões como “Greece and Eastern Kingdoms”, “Rome and the Barbarians”, “Roman Civil Wars” e “Imperial Rome”. Portanto tem muito por onde se entreter caso goste deste período da história e tenha tempo para jogar. Por falar em tempo, tenho de me despachar porque está na hora de preparar o banho à sua alteza que tresanda a leite instantâneo que carinhosamente tem vindo a bolsar para o pescoço.


Refiro ainda, para que depois não diga que não o avisei, que as regras são relativamente fáceis de compreender, embora o livro de instruções seja considerável (mas tem muitos exemplos) e basta usar o bom senso e os conhecimentos militares para perceber o que possa estar mal compreendido. O único ponto desfavorável é que a caixa traz 250 blocos de madeira a que é preciso colar uns autocolantes minúsculos. É um trabalho árduo, não o vou negar e vai ser necessária muita, mas mesmo muita paciência. Pode contratar, em opção, um chinês para o trabalho que normalmente cobra 30 cêntimos pelo serviço mas arrisca-se a que o resultado não seja o que pretende.
Só para terminar, acho que este jogo deveria estar presente nas bibliotecas nas universidades, especialmente nas que têm faculdade de história. Como ex estudante de história, tive uma disciplina que se chamava história militar da antiguidade e parece-me que C&C:A dava um bom complemento às aulas e resultaria muito bem para explicar a organização das batalhas e como elas se processavam. Pelo menos não era tão enfadonho como os tradicionais slides em Powerpoint.

Classificação: *****

6 comentários:

zorg disse...

Já tenho saudades de prosseguir a nossa campanha! :)

Cacá disse...

Sacanagem Hugo... Já "coleciono" o Memoir e o Battlelore e me achava feliz "apenas" com os dois, mas agora me deu vontade de jogar o Ancients... Vou parar de ler suas resenhas... hHAhahAHhahAHha...

PS: Meu pequeno Arthur já começa a rolar alguns dados pela casa (já está com 1 ano e 9 meses)...

Abraços do Brasil...

Duarte disse...

Olá Hugo, em primeiro lugar parabéns pelo nascimento do Gabriel!

Os meus tóclantes do CC&A foram precisamente um belo hobby nas primeiras noites de insónia que a Leonor me deu! O que vale é que nestes 11 meses não foram mais do que uma mão cheia.

Quanto ao jogo em si só tenho pena é de não o jogar mais vezes, dado que nunca consigo reunir com apenas um gamer ... aparecem sempre logo dois ou três atrás irra!

Abraços
DC

pintainho disse...

Bom dia a todos.

Descobri este Blog ao pesquisar a net por jogos de tabuleiro.

Sou fã de jogos desde tenra idade, e fiquei muito impressionado com as “críticas” feitas aos jogos “actuais”, essencialmente ao “Agricola”.

Estou um bocado desactualizado, pois o meu portfólio de jogos de tabuleiro consiste no Monopólio, Risco, Bolsa, Petróleo, Os Petroleiros, O Empresário, Operação Storm, Arena, Scotland Yard, Abordagem e outros do género e da “mesma idade”.

Fiquei fascinado com a fabulosa redacção sobre o “Agricola” e o “Le Havre” e muito curioso quanto ao aguardado “Mercator”. E muito empolgado para os experimentar!

Os meus jogos de estratégia de PC favoritos são o Caesar III e o Civilization. Pretendo jogos onde o factor sorte seja residual ou inexistente em detrimento da estratégia e onde não seja relevante a componente bélica.

Alguém me pode dar umas dicas sobre quais os jogos que devo experimentar?

Obrigado e boas jogatanas a todos,
Gonçalo Pinto

zorg disse...

Gonçalo,

Acho que a coisa mais importante a levar em conta, quando se está a escolher um jogo, são as pessoas com quem se está a planear jogá-lo. Por exemplo, eu acho o Le Havre um excelente jogo, cheio de variedade estratégica e coisas fixes para explorar, mas demora 3h... tens pessoas com quem jogá-lo que estejam dispostas a perder 3h? :)

Sérgio Sodré disse...

Boa tarde,

Gostaria de saber se é possível adquirir o jogo das Guerras Púnicas em Portugal

Obrigado