20 setembro 2007

Crítica: Notre Dame

Diz quem está no meio, que a notícia de que Portugal já tem um prémio para melhor jogo do ano causou algum rebuliço na indústria. Primeiro porque alguns editores e também designers, ao lerem a novidade nos sites de referência internacionais, pensaram que o prémio era oficial e que tivera sido entregue pelas mãos do próprio Presidente da República Portuguesa, Aníbal Silva. Depois porque, dada a beleza inequívoca do mesmo (o prémio, não o presidente), começou desde logo a existir por parte dos designers uma vontade enorme de o vencer, forçando os editores a atrasarem as edições para que os jogos possam ser desenvolvidos condignamente afim de se transformarem em sérios candidatos ao troféu.
Face a isto é natural que as atenções estejam todas viradas para este país à beira-mar plantado.
O vencedor deste ano foi Mac Gerdts com o seu memorável Imperial e, mal o prémio foi entregue, começou a ser possível vislumbrar, aqui e ali, os primeiros movimentos no que toca ao vencedor do ano que vem. A expectativa é tão grande neste momento que, uma conhecida casa de apostas na Internet, está a aceitar desde o início do mês as fezadas dos jogadores quanto ao próximo premiado.
Quem parte, desde já, como grande favorito é a grande esperança aqui do burgo, Stefan Feld, que se tornou conhecido da noite para o dia com o sensacional jogo para dois jogadores, Roma, editado pela Queen em 2005.
Os olhos viraram-se então para este jovem alemão que, sentindo nos ombros a pressão de ser apontado por alguns como “The next big thing”, lançou para o mercado o fraquinho Rum & Pirates, colocando em jogo a qualidade da mítica colecção Big Box da Alea que, alias, anda desesperada à procura da excelência de outros tempos. Num âmbito estritamente afectivo, levou também ao desalento a sua querida esposa que foi obrigada a encostar o pobre marido à parede e fazê-lo optar entre o divórcio ou, em alternativa, desenhar de raiz uma obra-prima que fosse reconhecida mundialmente.
Stefan teve a opção que qualquer homem com tomates teria. Mandou a mulher dar uma volta, satisfez os seus desejos mais primários com prostitutas escolhidas por catálogo na Internet e meteu-se na pinga e na droga. Em menos de quatro meses transformou-se num homem feliz, fez um filho (embora a mãe tenha abortado) e conseguiu vender à Alea a sua obra-prima – Notre Dame. Como se ainda fosse pouco, Stefan arrisca-se seriamente a vencer o prémio de Portugal para o melhor jogo de 2007.
A ex-mulher, antevendo desde cedo a glória do marido, lançou entretanto no mercado a sua autobiografia que vem dar a conhecer crises de flatulência do designer, principalmente quando este convidava amigos e familiares para jogar Bonhanza.


Notre Dame recupera magistralmente um estilo de jogo que não tem tido, infelizmente, a atenção que merece por parte de designers e editores. Falo do “Cube Management”. Não deixa de ser algo estranho este afastamento dum estilo que, por si só, envolve muitas escolhas e potencia muitos caminhos para a vitória, condições que normalmente fazem um bom jogo. O mais irónico disto tudo é o facto do melhor jogo de todos os tempos, Puerto Rico, ser um cube management embora não o seja no sentido mais puro do termo.
Ora é essa pureza que Feld recupera neste segundo título consecutivo para a colecção Big Box da Alea. E o resultado, esse, não podia ser melhor.

O tabuleiro de Notre Dame está dividido em 8 regiões. Cada uma das delas, quando activada, permite ao jogador beneficiar do seu atributo especial. Para activar a região é tão somente necessário colocar um cubo nela. E os benefícios podem ser vários. Desde o recebimento de mais cubos, moedas ou pontos, passando pela precaução de pragas de ratos, até ao movimento da carruagem pelas escuras ruas de Notre Dame.
Em suma, e para que não haja duvidas de como as coisas funcionam, se o conviva precisar de dinheiro coloca um cubo na região do dinheiro, se quiser movimentar a carruagem coloca um cubo na região correspondente e se quiser, no entanto, combater a praga de ratos gasta um cubo nessa área. Nada difícil a mecânica e bastante funcional como se vê. O pormenor interessante nisto tudo é que, quanto mais cubos o jogador tiver numa região, maiores são os benefícios. Ou seja, e para que não subsistam enganos, sempre que se colocar na região, por exemplo, do dinheiro um cubo e se, nessa região já lá estiver outro em resultado duma jogada anterior, o feliz jogador receberá não uma moeda, mas sim duas. Mais tarde, se houver oportunidade, colocar o 3º cubo, então o delírio é total e o felizardo arrecadará não uma, não duas, mas sim três moedas. Este é um desfecho bastante feliz para o jogador. Para que se tenha uma ideia da felicidade, receber duma assentada 3 moedas neste jogo equivale mais ou menos ao cheque de rescisão do Mourinho. Mas não pensem que esta comparação é apenas para queimar texto ou para ser uma tentativa infeliz de fazer humor. Não, a comparação existe para que se saiba desde já que o dinheiro é um bem muito raro e dá muito trabalho tê-lo mas em compensação traz muita felicidade. O mesmo se passa com os cubos que se usam para accionar as regiões.
O jogador terá de fazer a gestão inteligente dos cubos que vai tendo em mão. Mas como está bom de ver, haverá alturas que o jogador não vai ter cubos para colocar nas regiões. Esta é uma situação de jogo que vai acontecer mais cedo do que se espera. Neste caso é permitido movimentar cubos duma região para a outra, forçando o jogador a destapar dum lado para tapar do outro. Aqui quantos mais cubos estiverem em cima da mesa melhor, porque permitem benefícios maiores.
Tudo muito difícil e sofrido. Todos os bens são escassos, excepto as dúvidas do jogador que serão sempre muitas ao longo da hora que dura cada partida.


Dois aspectos engraçados que Notre Dame traz são as pragas de ratos e também o movimento das carruagens. Quanto movimento das carruagens não há nada de novo. As regiões do mapa têm entre elas caminhos que se ligam a tiles. Cada jogador tem a sua carruagem e estes vão lutar pelo açambarcamento das tiles. As tiles dão bónus bastante interessantes, proporcionando pontos extras, cubos, dinheiro, etc. Com isto os jogadores vão entrar em disputa pelos bónus mais valiosos. Tal como nos outros aspectos do jogo, para que a carruagem ande, é necessário accionar a região. Os espaços que a carruagem pode andar pelo mapa depende dos cubos estacionados na região respectiva, funcionando da mesma forma do exemplo que dei com o dinheiro. Este é o elemento em que a interacção entre os jogadores é mais directa. E a luta geralmente é intensa..
O outro aspecto, que é o aspecto pelo qual o jogo vai ser lembrado durante décadas, é a praga dos ratos, que tem um efeito brutal no jogo dos jogadores. Existe entre os concorrentes um mau estar sempre que estes roedores aparecem, ou melhor, ameaçam aparecer. Cada adversário tem uma escala de ratos. Esta escala vai aumentando com o desenrolar da ronda. Sempre que no fim de cada turno o indicador passar a escala o jogador fica sem 2 pontos e sem um cubo duma região. Já que estou numa de comparações, ficar sem um cubo e 2 pontos é o mesmo que ficar sem a carteira numa viagem de metro em Barcelona. Claro que não é o fim do mundo, mas dá um grande transtorno. O pior neste cenário é que estas pragas são bastante frequentes e para as evitar o jogador terá de abdicar de colocar cubos em zonas mais apetecíveis (dinheiro, cubos, carruagem), para os gastar na prevenção. Os ratos são mesmo uma praga e desequilibram tudo.

Tudo isto é jogado através de cartas. Cada jogador tem um baralho de 9 que representam as 8 regiões do mapa, mais Notre Dame (não importa explicá-la). Em cada turno o jogador retira desse baralho 3 cartas aleatoriamente. Escolhe uma e passa as outras duas ao jogador da esquerda, recebendo da direita as cartas em falta. Das duas que recebe escolhe uma e passa-a à esquerda recebendo da direita a ultima carta. Depois joga-as accionando então as regiões. É uma interacção muito subtil entre os jogadores. Ainda para mais a carta Notre Dame que tem um valor alto, mas que o jogador muitas vezes está tão aflito que vai ter de abdicar dela. A escolha de cartas é tão cruel que o jogador cada vez que tem de optar parece que leva com um camião TIR em cima a 200 Km Hora. Agora imaginem esta sensação várias vezes durante 60 minutos.
Falta apenas só fazer uma pequena referência ao dinheiro. O dinheiro serve para comprar os favores de certas personagens que vão aparecendo durante o jogo. Estas dão benefícios que permitem equilibrar o jogo dum jogador que entretanto se vai desequilibrando pela troca de cartas e pelos %&## dos ratos. Por outro lado o dinheiro também serve para comprar pontos com a carta Notre Dame. Ganha no fim quem mais pontos tiver.


As minhas notas finais sobre este título só podem ser as melhores possíveis. Não me vou por aqui de joelhos a gritar para que o comprem, mas é um título que ajuda a completar as ludotecas dos jogadores que certamente estão carenciadas dum cube management como deve ser. Por outro lado é um jogo que dá um novo fôlego à colecção Big Box da Alea.
A arte do jogo e os seus componentes são muitos bons e o tabuleiro deve ser a coisa mais esquesita que já vi na minha mesa, mas em contrapartida é um dos mais bonitos.
O jogo, numa primeira análise, pode causar alguma estranheza, mas quem o experimente fica a pensar nele nos minutos seguintes ao fim duma partida. O jogo quase que obriga a ser repetido. As regras não são difíceis, mas aconselho vivamente que depois da primeira experiência voltem a lê-las porque existem pormenores que podem não ficar esclarecidos logo à primeira leitura.

Pontos Positivos:
Regresso das Alea à grande forma que todos esperávamos
Grafismo bastante bem inserido no espírito do tema
Inúmeras estratégias possíveis para chegar à vitória.
Curva de aprendizagem interessante
Cada jogo dura uma hora

Pontos Negativos :
Como o cube management não é um estilo muito popular, a primeira partida pode causar alguma estranheza
Não há espaço para o regabofe e a concentração aconselha-se

6 comentários:

zorg disse...

Está gira a review. Estás a ficar um mestre nesta arte! Tens de me dar umas lições!

Em relação ao jogo em si, tenho alguns comentários.

Para começar, o facto de se notar perfeitamente que este é um jogo da Alea. É claro que o jogo foi desenvolvido, limado, testado e apurado obsessivamente. Há várias estratégias possíveis para a vitória e todas elas têm boas hipóteses de sucesso. Todos os edifícios têm utilidade, desde que a sua utilização seja enquadrada num plano mais abrangente. As decisões são difíceis em todas as jogadas, porque há normalmente muitas alternativas interessantes que se apresentam ao jogador. No nosso último jogo, tu seguíste um caminho diametralmente oposto ao meu (fizeste muitos pontos com as mensagens, enquanto eu não fiz quase nenhuns) e estiveste muito perto de ganhar.

Para além disso, este é um jogo cuja simplicidade é apenas aparente. Eu já o joguei bastantes vezes, algumas delas online, e as minhas pontuações raramente ultrapassam os 60 pontos. No BSW há gajos a fazer consistentemente mais de 70 e já perdi um jogo com um gajo que fez 90 e tal. Para passar dos 50 e tal 60 pontos de pontuação, para os 70 e tal 80 é necessário dominar mesmo as várias componentes do jogo de uma forma que eu só agora me começo a aperceber (é verdade que eu sou imbecil, mas pronto, mesmo para um gajo normal é preciso vários jogos para atingir esse nível de excelência).

Nalgumas coisas, este jogo faz lembrar o Puerto Rico, embora não tenha a mesma "dimensão". Há vários caminhos possíveis para a vitória e, para se jogar bem, é preciso estar muito atento ao que os adversários fazem. Para além disso - e tal como no puerto rico - um jogador influencia muito directamente outro que se sente à sua esquerda, através das cartas que lhe passa ou nega. Mas este tipo de considerações só é feito por jogadores relativamente experientes.

Por último é de salientar a tua persistência e o teu empenho em tentar ganhar um jogo, infelizmente ainda não recompensado. Mas continua assim que mais cedo ou mais tarde vais conseguir... ;)

soledade disse...

Boa review. Eu não diria que o Feld estaria à frente para o melhor de 2007 mas, pelo menos, está lá na peugada. :) O AoE3, por enquanto, parece-me mais bem colocado. Mas adiante.

Também acho o jogo muito bom. Não o acho o colosso que é Puerto Rico, mas acho-o muito competente. Um estilo muito Alea e, portanto, muito europeu. Só não acho muito boa a forma como decorre aquela coisa das carruagens. É que, depois de todos os objectivos cumpridos (e isso aconteceu-nos rápido), os cubos lá investidos e, sobretudo, as cartas, tornam-se obsoletos e, na minha opinião "sujam" um jogo que, para o estilo Alea, deveria ser 100% polido.
Resumindo, é um jogo com várias vertentes estratégicas mas com algumas limitações, quer em termos de rejogabilidade, quer em termos de falta de interacção.

Belíssima review.

zorg disse...

>Só não acho muito boa a forma como decorre aquela coisa das carruagens. É que, depois de todos os objectivos cumpridos (e isso aconteceu-nos rápido), os cubos lá investidos e, sobretudo, as cartas, tornam-se obsoletos e, na minha opinião "sujam" um jogo que, para o estilo Alea, deveria ser 100% polido.
-
Não concordo com esta tua apreciação. As mensagens são recursos limitados, é verdade, mas essa é uma informação que os jogadores têm desde o início. Quem opta - e sublinho o "opta" - por ir buscar muitas mensagens (o que não obriga a que se ponham muitos cubos no distrito da carrugem) sabe que tem de lidar com essa escassez, que é, aliás, completamente intencional.

Por outro lado, há uma carta muito importante - e que é muitas vezes ignorada quando se joga os primeiros jogos - que te permite mover 3 cubos de uma região para outra. Se tiveres muitos cubos na carruagem e já não houver mensagens para apanhar, podes sempre usar esta carta para mover esses cubos para outro distrito (por exemplo, o parque) e mudar o foco da tua estratégia. Momentos diferentes do jogo requerem, tal como noutros jogos, prioridades diferentes e é crucial ires adaptando a tua máquina produtiva a essas prioridades.

Para terminar, os cubos numa região dificilmente são inúteis. Mesmo que a acção já não faça sentido (como por exemplo, mover a carruagem quando já não há mensagens), há várias cartas que te dão pontos dependendo de teres x cubos numa região (a que dá dois pontos por cada região onde tenhas 2 cubos, a que dá 3, por cada uma em que tenhas 3, ou a que dá tantos pontos quanto o número de cubos que tens na região onde tens mais cubos). Até pode ser vantajoso continuar a por cubos na carruagem quando já não há mensagens, só para aumentar o número de pontos que recebes com estas cartas...e muitas vezes é.

Como já disse, tenho jogado ND muitas vezes, e não tenho notado nenhuma falta de imprevisibilidade, antes pelo contrário. Continuo a aprender coisas novas sempre que jogo e a impressionar-me com a minha falta de habilidade. :)

Unknown disse...

Pronto, mais um jogo para a minha wish list. Qualquer dia processo-vos em 3 cubos. :)

Boa review.

soledade disse...

>Só não acho muito boa a forma como decorre aquela coisa das carruagens. É que, depois de todos os objectivos cumpridos (e isso aconteceu-nos rápido), os cubos lá investidos e, sobretudo, as cartas, tornam-se obsoletos e, na minha opinião "sujam" um jogo que, para o estilo Alea, deveria ser 100% polido.

Eu também sei que há formas de reutilizar esses cubos. Mas e as cartas? Não as achas obsoletas a partir do momento em que terminam as mensagens? Bem sei que podem ser usadas para prejudicar o jogo aos adversários, dando-as. Mas não achas que o jogo deixa de ser 100% polido?

E falta de habilidade para lidar com jogos deste tipo (Cube Management) é minha. Sou assustadoramente horroroso! :)

Bruno Valério disse...

Joguei apenas uma vez e não fiquei assim fã mas tenho sem dúvida de jogar mais algumas vezes.