20 janeiro 2009

Le Havre: O som das gaivotas

Uwe é o homem do momento. Se houvessem revistas sobre Boardgames, em todas elas a fotografia deste designer alemão apareceria estampada na capa do mês de Dezembro. Seria um Uwe sorridente, despreocupado com o seu futuro e com a calma de quem finalmente conseguiu fazer algo de muito positivo pelo mundo e pelos seus habitantes.
Muitas das opiniões de 2007 tinham colocado Agricola no top dos melhores do ano. O jogo venceu todos os prémios a que tinha direito e merecidamente chegou ao topo do BGG ou seja, para todos os efeitos, assumiu-se como o melhor jogo de sempre, destronando de vez o mítico Puerto Rico. Relembre-se que Puerto Rico esteve 6 anos no poleiro e o efeito psicológico de ter sido destronado, relembra-me mais ou menos, na minha infância, a sensação de alívio que tive quando o single do Stevie Wonder “I Just Call to Say I love You” saiu do lugar cimeiro do Top Singles de Portugal.
Ora, face a esta evidência e mediante a notícia que o Sr. Uwe teria feito 4 jogos baseados em Caylus, os olhos do mundo estão postos agora em Le Havre, o segundo título da série. Logo nos primeiros comentários após Essen deu para perceber perfeitamente o que estava em jogo. Se Agrícola foi o melhor de 2007, Le Havre será o melhor de 2008. Um bocado como Coppola fez com os seus padrinhos.


Le Havre é um jogo muito semelhante a Agricola uma vez que não esconde e percebe-se bem, que a grande fonte de inspiração para o seu desenvolvimento foi o prestigiado Caylus. Não interessa aqui fazer uma listagem das diferenças. O que importa é dizer categoricamente para princípio de conversa e para dissipar todas as possíveis dúvidas que Le Havre é suficientemente diferente de Agricola para merecer a sua aquisição e fazer pensar aos fieis proprietários destes dois jogos qual deles é o melhor. A resposta não é de todo fácil e, tal como no futebol, as opiniões vão-se dividir. A defesa das mesmas tende a tornar-se mesmo bastante violenta no caso dos intervenientes possuírem um proeminente desamparo social.

A história de Le Havre não é nada fácil de contar. Somos uma espécie de negociante que se movimenta pelas ruas sujas e manhosas desta cidade costeira e que tenta conseguir o máximo de dinheiro possível nos seus negócios e investimentos. Mas a demanda pelo ouro tem como base e força motriz este porto francês que traz à sua população diariamente e sem interrupções, peixe fresco, animais, madeira, ferro, barro e cereais. São estas as matérias-primas com as quais os jogadores podem iniciar a dinamização dos seus investimentos e dar à população tudo o que ela precisa.
Com a aquisição destas matérias, os jogadores poderão ir comprando edifícios. Estes edifícios permitem não só obter algum dinheiro numa base de troca como também, e isso é muito importante, transformar as matérias-primas que diariamente chegam ao cais sujo e gorduroso de Le Havre em recursos mais valiosos.
Os jogadores na sua vez de jogar vão assim poder fazer uma de 2 coisas. Ou vão buscar uma quantidade variável de matéria-prima primária do tipo que enumerei ou utilizam um dos edifícios em jogo e aplicar a sua função (um deles permite construir mais edifícios). Estes fazem e sem querer adiantar muito, o que se espera que façam em jogos deste tipo. Transformam madeira em carvão, tijolo em barro, animais em bifes, peixe em peixe fumado, etc. Ou seja, a par de todas as matérias-primas iniciais, os jogadores a determinada altura vão transformá-las. Assim, e que isto sirva de aviso dos mais corajosos, o pobre do jogador vai ter mais activos para gerir do que alguma vez geriu em qualquer jogo de tabuleiro. Escusado será dizer que os recursos transformados vão ser necessários para construir edifícios mais poderosos e que valem mais pontos no final do jogo. No meio disto tudo, ou não estivéssemos nós num porto, as construções mais esperadas são os barcos. São difíceis de construir, até porque vai ser obrigatório a obtenção do recurso mais raro, mas é a partir deles que se consegue escoar os produtos. Assim, cabe ao jogador pegar nos seus recursos, sejam eles primários ou transformados e enviá-los via mar. Como está bom de adivinhar, os recursos transformados valem bem mais do que os que não o são.
No fim conta-se o dinheiro e os pontos dos edifícios.


Basicamente é esta a ideia do jogo. Outro dos aspectos importantes é que o jogador terá de alimentar a sua população e também obter a energia necessária para a transformação das matérias-primas de que escrevi há pouco. Madeira e carvão serão gastos na transformação, peixe, cereais e carne na alimentação. O ferro, o barro e a madeira servem para a construção dos edifícios. Todos estes afazeres vão dar cabo da mioleira do desgraçado do conviva e terá vários motivos de stress, principalmente nas primeiras partidas. Aconselho que cada um jogue com a intuição que Deus lhe deu e que não se preocupe muito com as consequências. Numa primeira fase é apenas aconselhável colher o máximo de informação possível para depois, já mais calmo no leito e antes que a esposa quebre o silêncio com o ronco, o jogador possa pensar o que é importante e o que não o é para melhorar a sua prestação nas jogatanas seguintes.

É muito difícil jogar a esta maravilha de Sr Uwe. Existem 130 coisas para fazer ao mesmo tempo e cada jogador na sua vez de jogar terá apenas uma acção. Situação que vai deixar muitos a gargalhar como as pessoas em que lhes é servida uma feijoada ao jantar no anúncio da Frize. Não esqueça o amigo leitor que estamos a falar de 15 recursos. Por outro lado a mecânica da quantidade de recursos de ronda para ronda ir aumentando, provoca uma tentação do jogador tão grande que acaba por ser decepcionante. Imaginemos que eu tinha pensado em pegar nas minhas vacas e transformá-las em bifes e pele curtida. Tudo bem, basta para o efeito ir ao porto pegar nas vacas disponíveis, ir ao matadouro deixar os animais e depois pagar a energia suficiente para as máquinas do matadouro trabalharem. Após todo triturado é só pegar nos bifes e nas peles e colocar na minha área de jogo. Num futuro poderei alimentar a população com os bifes e vender nos barcos a pele. Mesmo para o leitor que não jogou estará a pensar que a ideia lhe parece fazer bastante sentido. Pois, o problema é manter-se fiel ao plano. Imagine que quer ir buscar as vacas ao porto. Existem 4 vacas. Mas mesmo ao lado estão disponíveis 9 barros. Bem, se calhar o melhor é pegar já nos barros e logo se vê como vai ser com os animais. Quando o jogo der a volta, e se ninguém pegar nos animais, estarão lá 5. Mas, mesmo ao lado estão 10 moedas. O jogador fica indeciso e pega no dinheiro. Pergunta: Então e o plano de levar a vacaria para o matadouro? Lá se vai o plano. Esta tentação repete-se umas 30 vezes em 3 horas.


Apesar de todo o esclarecimento que demonstrei, a verdade é que apenas joguei uma vez. Por isso ao contrário da maioria dos jogos em que basta jogá-lo uma vez para lhe tirar a pinta, Le Havre assume-se como um brinquedo manhoso e de mau feitio. Desvenda-se aos poucos e existem sempre estratégias diferentes para explorar e colocar em prática. Nada parece certo e vai demorar algum tempo até que um jogador consiga conhecer o tabuleiro como a palma da mão. Le Havre está tão bem desenvolvido que até chateia. Nada é posto ao acaso, tudo está equilibrado e funciona na perfeição. A interacção entre os jogadores é bastante pequena, pelo menos nas primeiras jogas, onde o jogador estará mais preocupado em sobreviver do que em matar os outros. Mas não existe muita interacção. Claro que as escolhas dos adversários acabam sempre por influenciar as opções disponíveis. Se um palhaço for buscar as vacas eu não o poderei fazer. Mas como as opções são sempre tantas que nada parece influenciar muito, muito embora seja uma opinião que não posso fundamentar por ter jogado uma vez. Em comparação julgo que o Agricola tem mais interacção. Por outro lado Le Havre demora 180 minutos a ser resolvido numa primeira fase. Com a explicação das regras o tempo excede o razoável, mas acredite que valerá a pena porque há realmente muito por descobrir. Eu achei o tempo demasiado longo e custou-me um bocado, mas eram 2 da manhã e compreende-se que o cérebro e a clarividência não estejam nas suas melhores alturas. Seja como for convém avisar que Le Havre é muito pesado, bastante mais que Agrícola e vai exigir mais. No entanto quem gosta do Agrícola irá certamente ficar feliz com Le Havre. Se não gostou do Agricola parece-me que não terá melhor sorte com este. Se não tiver nem um nem outro, talvez a pele de agricultor lhe sirva melhor.
Uma coisa é certa, jogos destes há muito poucos. Se tiver de escolher entre Agrícola e Le Havre, acho que escolheria o Mercator, o 3º jogo da série a sair este ano.

Classificação: *****



5 comentários:

zorg disse...

Este Le Havre é a loucura do momento! Não vivesse eu rodeado de maricas e jogava isto todos os dias!

É complexo, tem muitos caminhos possíveis, exige atenção constante às oportunidades que vão surgindo mas, ao mesmo tempo, obria a que se tenha uma estratégia de longo prazo.

As comparações com o Agricola são inevitáveis. Acho, no entanto, que são jogos muito diferentes apesar de partilharem alguns conceitos. No Agricola, a questão que se coloca é a de rentabilizar as acções. Por exemplo, não vás ao espaço que te permite constriur um ou mais quartos e um ou mais estábulos, se só tiveres recursos para construir um quarto. A dificuldade no Agricola está em conseguir conjugar o aproveitar das oportunidades na recolha dos recursos, com os timings certos para executar determinadas acções que são necessárias para cumprir os múltiplos objectivos.

No Le Havre, não é tanto assim. De cabeça, só me lembro de um edifício que permite fazer economias de escala destas (um dos edifícios de construção, que permite construi um ou dois edifícios). A ciência, no Le Havre, tem mais a ver com a escolha do caminho a seguir para gerar muito dinheiro (um só objectivo, por oposição aos múltiplos do Agricola) e menos a ver com optimização de acções (embora também esteja presente).

Gostei muito das sessões que fiz até agora e não me incomoda nada o tempo que demora. Estive sempre tão embrenhado no jogo, que não dei pelo tempo a passar. Estou ansioso por continuar a descobrir esta nova pérola do Sr. Rosenbert. Ah, e o Mercator vai ser compra automática, depois destes 2 jogaços...

Catenaccio disse...

Como sempre, felicito a qualidade da descrição de mais um título. Já estive no BGG a ver mais informação sobre o 'Le Havre' e fiquei bem impressionado.

Todavia, não poderia terminar sem uma referência ao momento alto deste texto, quando se diz "relembra-me mais ou menos, na minha infância, a sensação de alívio que tive quando o single do Stevie Wonder 'I Just Call to Say I love You' saiu do lugar cimeiro do Top Singles de Portugal".

Lembro-me tão bem disso...ahhh, os gloriosos anos 80. Já agora, recordam-se de qual a música que destronou o Stevie Wonder? Txiiii...outro clássico: Woodpeckers from Space. Vejam lá isto: http://viva80.blogspot.com/2006/09/woodpeckers-from-space.html

Abraço.

soledade disse...

Eu gostei do jogo, numa primeira abordagem. A questão é que demorou imenso tempo (para lá das 3 horas) e a coisa arrastou-se um bocadinho, deixando a tal sensação de má experiência. Percebeu-se, ainda assim, que estamos perante um jogo muito bem feito, com algumas ideias originais e com um mecanismo de economia bem interessante. Objectivamente, demorasse ele menos uma hora e seria melhor que Agricola, naquele rácio tempo/diversão. Assim, tendo a preferir este a aquele.

PS

zorg disse...

Sim, é um facto que o jogo demora bastante tempo. Nas nossas sessões, também foi sempre mais de 3h.

Uma coisa que me dá esperança, é que me parece que grande parte do tempo consumido tem a ver com os jogadores a olharem para os edifícios para verem, ou recordarem, qual a sua função. Pode ser que, à medida que os jogadores forem ganhando experiência, essa necessidade vá desaparecendo e o tempo de jogo se reduza.

Li algures no BGG um post de um tipo a dizer que o jogo demorava imenso tempo, mas a partir da 4ª ou 5ª partida (com os mesmos jogadores), aquilo fez click e agora jogam em menos de 3h. Espero que connosco aconteça a mesma coisa! :)

Costa disse...

Boa review.
Eu tamb+em gostei do jogo, mas ficou-me um amargo de boca devido aod tempo e ao downtime que o jogo tende a carregar consigo.

Se calhar é como dizes, com mais algumas partidas e com os jogadores mais familiarizados com o jogo, pode ser que a coisa marche melhor.

Também concordo contigo quando dizes que é um jogo bem diferente de AGRICOLA, isto apesar das óbvias semelhanças. Este é mais económico, no anterior temos de gerir recursos. As mecânicas são semelhantes, a agonia também, mas LE HAVRE é mais penalizador para o jogador incauto.