09 novembro 2006

Review: San Juan e as cartas estaminais

Há uns bons anos atrás, um jovem empregado do registo de patentes acordou de manhã pouco contente com o comportamento da mecânica clássica em referenciais acelerados a velocidades próximas das da luz. Podia ter acontecido a qualquer pessoa! E esse jovem fez a única coisa que uma pessoa que acorda de manhã descontente com o comportamento da mecânica clássica em referenciais acelerados a velocidades próximas da luz poderia fazer: despenteou o cabelo, deixou crescer um bigode à Artur Jorge, arranjou uma mulher boa e criou a teoria da relatividade, resolvendo o problema de uma vez por todas. O seu nome era Albert Einstein e é um ícone da cultura pop, aparecendo em inúmeras t-shirts por esse mundo fora.

No entanto, o que pouca gente sabe é que Einstein não acertou à primeira! Alguns anos antes da teoria da relatividade, que prima pela elegância e simplicidade com que resolve as questões mais complicadas, publicou outra teoria, a que chamou "A teoria das explicações incrementalmente complexas para problemas decrementalmente simples e cuja complexidade se pode aferir pelo comprimento do seu título", que procurava responder às mesmas perguntas, mas de uma forma muito menos elegante e simples, que envolvia partículas subatómicas falantes, espaços a 20 dimensões e forças conscientes com comportamentos emocionalmente instáveis e contas do psiquiatra brutais.

Era a atracção natural que a juventude sente pela complexidade a sobrepôr-se à racionalidade simplificadora, que tão bons resultados costuma dar.



Há uns poucos anos atrás, outro jovem alemão acordou de manhã muito pouco contente com a oferta existente no mercado, de jogos de tabuleiro com um tema de colonização das caraíbas e com um sistema económico interessante baseado na exploração sanguinária de mão de obra escrava. Podia ter acontecido a qualquer pessoa, também. Naturalmente, esse jovem fez a única coisa que alguém que acorda de manhã descontente com a oferta existente no mercado, de jogos de tabuleiro com um tema de colonização das caraíbas e com um sistema económico interessante baseado na exploração sanguinária de mão de obra escrava, poderia fazer: despenteou o cabelo, arranjou uma mulher fogosa e sem preconceitos, tatuou uma inscrição anti-racista no pénis e criou o San Juan.

O seu nome é Andreas Seyfarth, ainda está vivo e de boa saúde, e é um ícone sexual lá na casa dele, aparecendo em inúmeras fotos!

No entanto, o que pouca gente sabe é que Seyfarth não acertou à primeira! Alguns anos antes do San Juan, que prima pela elegância e simplicidade com que resolve as questões mais complicadas, publicou outro jogo, a que chamou "Puerto Rico" e que procurava dar resposta à mesma falha, mas de uma forma muito menos elegante e simples, que envolvia moedas, milho e uns tokens castanhos esquizofrénicos, com problemas em assumir a sua identidade de escravos selvaticamente explorados.

Era, tal como no caso de Einstsein, a atracção natural que a juventude sente pela complexidade a sobrepôr-se à racionalidade simplificadora, que tão bons resultados tem dado.

É verdade meus senhores, segurem as vossas calças, para não ficarem nuinhos com o espanto e não revelarem nenhuma inscrição anti-racista tatuada num sítio menos próprio: eu acho que o San Juan é melhor que o Puerto Rico e estou disposto a defender a minha convicção num ringue, numa troca de patadas voadoras e assentamentos de espadas, como fazem os homens!

Mas vamos ao jogo!



A caixa

A caixa é pequena e pouco entusiasmante. Nem sei porque me estou a dar ao trabalho de falar dela! O que vem lá dentro ainda excita menos: um baralho de cartas, uns quadrados de cartão com os vários roles, umas tiras, também de cartão, com os vários preços possíveis para os bens, um bloco para registar os resultados e um lápis. A resposta à pergunta que todos vocês estão a fazer neste momento em voz alta é: sim, o bloco e o lápis são mais inúteis que uma caixa de preservativos numa orgia de lésbicas, mas os restantes componentes são de boa qualidade!

O jogo

Tal como o Puerto Rico, este é um jogo sobre economia... e uma economia bastante tradicional!

Há que construir um sector produtivo, pô-lo a produzir bens à custa da exploração sanguinária de trabalho escravo - não sei se já tinha referido esta parte antes - e depois trocar esses bens para obter pontos. O interesse do jogo está na forma como tudo isto é feito e na forma subtil como a exploração sanguinária do trabalho escravo é omitida dos mecanismos do jogo.

Há aqui duas ideias brilhantes, pela eficácia e simplicidade, que merecem destaque, veneração e uma dança ritual esquimó de agradecimento ao Deus Tinui, A Grande Foca Branca: os roles e as cartas estaminais.

Ideia brilhante 1: os roles

O centro do jogo são os roles, que é uma ideia brilhante, também usada no Puerto Rico.

Há 5 diferentes (builder, prospector, trader, counsellor, producer) e cada um tem uma acção e um privilégio, com excepção do prospector que só tem privilégio.

Na sua jogada, o jogador escolhe um e aplicam-se os efeitos da acção a todos os jogadores. O privilégio só se aplica a quem escolheu o role.

O Builder permite construir edifícios e o privilégio é fazê-lo com desconto. O Producer permite produzir 1 bem, numa fábrica que esteja livre, e o privilégio é poder produzir 1 bem adicional. O Trader permite trocar 1 bem por mais cartas e o privilégio é poder trocar um adicional. O Counsellor permite escolher 1 carta de entre duas e o privilégio é poder escolher de entre cinco. O Prospector não tem qualquer acção e o privilégio é poder biscar uma carta do baralho, ou seja, só a pessoa que escolhe o Prospector é que beneficia do seu efeito.

Ideia brilhante 2: as cartas estaminais

No San Juan as cartas podem representar quase tudo! Os edifícios são cartas, o dinheiro são cartas e até os recursos são cartas. Só os jogadores é que não são cartas, mas é pena, porque poderiam perfeitamente ser!

Cada carta representa um edifício e há 2 tipos: edificios de produção e edificios especiais roxinhos, como o cabelo de uma cantora punk dos anos 70, com uma fixação no roxo.

Os edificios de produção, permitem produzir. Duh. Assim, quando alguém escolhe o Producer, cada jogador retira uma carta do baralho e, sem olhar para ela, coloca-a sobre um edifício de produção que esteja desocupado. A partir desse momento, essa carta torna-se o bem correspondente ao edifício de produção. Carta estaminal a dominar!

Os edificios especiais, roxinhos, como a túnica amaricada de um cabeleireiro, obrigam a uma piadinha homofóbica inevitável: quem os constrói demonstra ser uma pessoa especial, capaz de fazer uma afirmação de modernidade, tolerância e respeito pelas opções sexuais desviadas e antinaturais dos demais jogadores. Agora que já despachámos isto, posso referir que também permitem executar acções que, em condições normais, violariam as regras do jogo, como por exemplo produzir mais bens do que o normal, quando alguém escolhe o Producer, poder trocar mais bens do que o normal quando alguém escolhe o Trader, ganhar pontos adicionais (o Guild Hall permite ganhar dois pontos por cada edificio de produção que o jogador tenha, por exemplo), etc.

Grande parte da estratégia reside, por isso, na escolha de que edifícios produzir e quando.

Para contruir um edifício é preciso tê-lo na mão (ao edifício, claro), é preciso que alguém tenha seleccionado o role de Builder e é preciso ter dinheiro para o pagar. Notar que construir, neste contexto, tem o significado muito particular de colocar a carta à frente do seu dono, virada para cima, e não construir alguma coisa mesmo, com cimento, tijolos, imigrantes ilegais, máfia russa e essas coisas, como estou certo que a maioria de vocês estava a pensar. Mas há aqui um twist interessante: o nosso Andy não se contentou com esta história dos edifícios e dos bens serem cartas e levou o conceito estaminal mais longe, fazendo das cartas também dinheiro. E são as mesmas cartas!

Ou seja, imaginemos que eu tenho 4 cartas na mão e uma delas é uma fábrica de açucar que eu pretendo construir porque, pretendo lançar-me na arriscada e perigosa aventura da produção e comércio internacional de açucar, ou tão só porque quero meter açucar no café. Imagine-se também que o Hugo tinha seleccionado o Builder, porque não deve muito à inteligência e acha a imagem na carta do Builder bonita. Quando chegar a minha vez de usar a acção do Builder, terei oportunidade de construir a tal fábrica de açucar, pagando o seu preço, ou seja 2 pesos. Mas, pagar 2 pesos significa deitar fora 2 cartas das tais 4 que tinha na mão. Ou seja, depois da acção estar concluída, terei gasto 3 cartas: a fábrica de acucar, que agora repousará linda e altaneira à minha frente, virada para cima, depois de eu a ter construído e 2 cartas adicionais que "paguei" por ela, que agora repousarão lindas e altaneiras na pilha de cartas descartadas, viradas para baixo.

Não é preciso ser um génio para perceber as decisões interessantes e difíceis que este mecanismo simples introduz no jogo:

Uso esta livraria para pagar a construção do Aqueduto, ou espero um bocado até ter mais cartas e opto antes por construi-la?

Construo este aqueduto, que me vai permitir produzir um bem adicional na fase de produção e perco este guild hall, que vai render-me muitos pontos no final?

É uma ideia simples, mas muito eficaz!

Uma ronda

Uma ronda é um processo muito simples.

O jogador que tem a carta do governador escolhe um role e toda a gente aplica os seus efeitos (embora só o próprio beneficie dos privilégios). De seguida a vez passa para a pessoa à sua esquerda que escolhe outro role, dos que sobram, e assim por diante. A ronda termina quando o último jogador (aquele que estiver sentado à direita do governador) escolher o seu e os seus efeitos forem aplicados. Nessa altura, a carta do governador é passada para a esquerda, são verificados os limites de cartas e começa tudo de novo, com o novo governador a ser o primeiro a escolher. O jogo termina quando alguém construir 12 edifícios. O primeiro governador de todos é escolhido por um processo qualquer aleatório.

Apreciação final

San Juan é um excelente jogo! Dá muita margem de manobra aos jogadores e para se jogar bem é preciso saber aproveitar as oportunidades tácticas que vão surgindo, nomeadamente através das escolhas do role certo, na altura certa. Por exemplo, escolher o Trader quando ninguém tem bens para trocar a não ser eu, é uma vantagem importante para mim.

Mas não é tudo, já que tem também uma componente estratégica muito importante! Há muitas maneiras de fazer pontos e é preciso ir moldando a economia que se vai construindo de acordo com a estratégia escolhida. Por exemplo, se eu planear construir um Guild Hall perto do fim do jogo, que me vai render 2 pontos por cada edificio de produção, convém ter muitos edifícios de produção, para maximizar os seus efeitos.

A escolha da estratégia a seguir também não é trivial. Tem de se ter em conta a mão de cartas inicial, mas também é preciso ir tendo flexibilidade de adaptação, ao longo do jogo. Muitas vezes também é bom ser proactivo e não ficar à espera que saia uma determinada carta. Um bom jogador não é aquele que só domina uma estratégia e só joga bem quando lhe saem as cartas que lhe dão jeito para a implementar. Há que ter flexibilidade e o Counsellor está lá é para ser usado!

O San Juan tem ainda 2 outras qualidades importantes: joga-se depressa (com jogadores experientes, consegue-se terminar um jogo em 30/40 minutos) e é surpreendentemente bom como gateway game, devido ao seu baixo factor "incha porco!", que permite que os novatos vão jogando em segurança sem medo de levar uma berlaitada e sintam que construiram alguma coisa no fim, mesmo que percam o jogo.

Pessoalmente prefiro-o ao Puerto Rico. Parece-me mais elegante, acho a ideia de usar as cartas para tudo de génio e penso que constrange menos o jogador a cada jogada.

Enquanto no Puerto Rico há 2 estratégias conhecidas (a shipping e a builder) e quem dominar uma delas, pode lutar pela vitória em todos os jogos, independentemente das condições iniciais, no San Juan já não é bem assim. É preciso muito mais criatividade e capacidade de adaptação e não tanto, o dominar uma estratégia e o mais eficiente na sua execução.

Posto de outra forma: enquanto no Puerto Rico a cada jogada há 3 ou 4 alternativas válidas por onde escolher - e admito que muitas vezes essa escolha é dificil e interessante, porque o Puerto Rico é, de facto, um bom jogo - com o intuito de implementar uma de duas estratégias, no San Juan há 7 ou 8 alternativas válidas, para implementar uma de muitas estratégias possíveis.

E ainda por cima é barato e joga-se bem a 2, 3 ou 4! O que é que estão à espera? Vão a correr comprar! Já!


8 comentários:

Costa disse...

Conheço e já joguei. Inclusivamente fiz a minha própria cópia do jogo com ficheiros sacados do BGG.
O jogo é rápido, divertido e com uma excelente profundidade estratégica. É um 7 sólida para mim...
Mas ainda assim, prefiro PUERTO RICO... gosto de jogos com um tabuleiro... é que parecendo que não... facilita!

Hugo Carvalho disse...

O San Juan para mim foi uma boa surpresa. O facto das cartas servirem para tudo é bastante imaginativa e obriga o jogador a ter de descartar edificios e ficar com outros. A escolha que edificios ficam na mão e quais é que saem é bastante dramática, porque como as cartas sao também dinheiro o jogador passa o jogo a descartar.
Mas apesar de tudo, na minha opinião, O Puerto Rico é mais interessante e bastante mais exigente para o jogador que o San Juan.

Azulantas disse...

Bem, mordi o isco e vou já dizer ao meu cunhado para não perder tempo e comprar imediatamente esta pérola. Porquê, bem, por 2 motivos, principalmente:

1) Porque assim é ele que gasta o dinheiro, beneficiando automaticamente dos privilégios de ter e jogar este jogo. E depois o privilégio de mo emprestar.

2) Porque eu tenho o Puerto Rico e parece-me, para já, um pouco redundante ter os dois jogos. Existem outros jogos que prefiro comprar antes do San Juan.

Finalmente, porque tenho outro jogo do género que acho muito, mas mesmo muito bom, que é o Jambo. Que aconselho, também, vivamente.

zorg disse...

Quando eu digo que acho o San Juan melhor, não quer dizer que concorra na mesma classe que o PR. Até porque é mais simples, é mais rápido e é genericamente mais acessível. Só que no mesmo escalão do PR, há outros jogos que eu prefiro, como por exemplo o Caylus, ou o Age of Steam. No escalão do San Juan é dificil encontrar jogo melhor.

Mas também acho que a simplicidade do San Juan pode ser ilusória.

Enquanto no PR, quando se perde um jogo é dificil arranjar desculpas para o facto, a não ser o jogar mal, no San Juan é fácil atribuir a derrota à pouca sorte e não pensar mais no assunto.

Ou seja, quando se perde no PR há um incentivo para tentar aprender a jogar melhor de forma a ter melhores resultados da próxima vez. No San Juan isso pode não acontecer - a culpa foi da falta de sorte - e é pena, porque há muito para aprender se se pretender jogar bem. É o que eu digo na review: enquanto para alguém ser um bom jogador de PR basta-lhe dominar 1 das 2 estratégias existentes e pode aplicá-la sempre, independentemente das condições iniciais, que tem boas chances de vencer, para se ser um bom jogador de San Juan, há mais estratégias a dominar porque há muito mais variações ditadas pela sorte das cartas. Isto obriga a maior criatividade e capacidade de adaptação, que é algo que me agrada bastante.

Os melhores jogadores de San Juan do BSW têm percentagens de vitória comparáveis aos melhores jogadores de PR e isso, num jogo com um factor aleatório razoável, é bastante impressionante!

Dimitri BR disse...

1. hauhauahauahaua

2. estou bastante inclinado a concordar que o SJ é melhor que o PR, e até a juntar-me a ti, Zorg, na defesa violenta de tal tese.

meu gosto pela concisão e o fascínio por idéias como a das cartas multi-funcionais já me deixavam inclinado a isso, mesmo antes deste teu excelente, convincente post.

falta-me apenas - pequeno detalhe! - oportunidade de experimentar o referido joguinho de cartas polivalentes. porque bater-me por algo que não conheço já não é bem do meu feitio.

aviso-o tão logo esteja pronto para juntar-me a ti na inglória tarefa de defender o irmão bastardo do todo-poderoso joguinho colonialista.

3. "(...) partículas subatómicas falantes, espaços a 20 dimensões e forças conscientes com comportamentos emocionalmente instáveis (...)"

curioso: a julgar pelas tuas pesquisas, a Física Moderna anda a regredir no tempo - pois ã citação acima descreve exatamente algumas das teorias atuais!

penso que seria um grande seviço dares a conhecer a esses senhores físicos de hoje em dia o obscuro volume contendo a primeira tentativa do bom Albert.

que além dos bigodes magníficos para se usar em canecas e postais, ainda arranhava o violino - dizem - com alguma habilidade, até.

Anónimo disse...

Nada que ver com jogos:

Os primeiros parágrafos do post estão sensacionais! :) Congrats!

soledade disse...

#1: bela crítica.

edit#1: belo texto

#2: não conheço o san juan mas, a avaliar pelas doutas opiniões, parece que vale a pena experimentar. Confesso que quando vi a versão home made do Costa fiquei quase perturbado emocionalmente e nem sequer considerei aquilo como podendo ser um jogo jogável, quanto mais, bom.

#3: eu perco tanto, tanto, no Puerto Rico que, agora que li a teoria da costrução/embarque, começo a duvidar da minha capacidade de produzir neurónios.

#4: Vamos falar de coisas importantes... quem era a gaja boa do Albert?

Abraços
Paulo

missbutcher disse...

OK, então vamos combinar o seguinte: San Juan no BSW. Acho que estamos a duas horas de distância apenas. Portanto, podemos nos encontrar lá na sexta (24/22/2006) às 21h aí (19h aqui). Que tal? Muito cedo? Muito tarde? Todos têm skype? Passo as minhas informações por e-mail.
Bjs